quarta-feira, 10 de março de 2010

Carta aberta ao ministro Paulo Vannuchi

 Carta aberta ao ministro Paulo Vannuchi
 
 Emiliano José

  Caríssimo companheiro e amigo Paulo Vannuchi,

  Nesses dias tempestuosos gostaria de tê-lo abraçado pessoalmente,
 transmitir-lhe meu apreço, minha amizade e minha mais absoluta
 solidariedade. Não foi possível, no entanto. Estou lhe escrevendo
 agora, no momento em que a poeira baixou, sei que momentaneamente.
 Todo esse barulho em torno do Plano Nacional de Direitos Humanos tem
 objetivos definidos, não carrega qualquer inocência, faz parte da dura
 luta política que enfrentamos no Brasil.



 Nós, da esquerda, às vezes acreditamos que o caminho está livre. Que
 somos atores solitários, que a história conspira a nosso favor. Não
 conspira. A história é feita por homens e mulheres, sob circunstâncias
 concretas. Sei que você sabe disso, mas o óbvio ajuda. Aqui estamos
 nós no Brasil enfrentando a discussão de um plano elaborado
 democraticamente, numa vasta conferência nacional. E a direita toda se
 assanha, e ministros se assanham, e parece que o mundo vem abaixo se
 for implantada a Comissão da Verdade.



 E eu trato apenas disso, nessa carta. Não dos outros pontos ditos polêmicos.



 Os que fizeram a ditadura e seus defensores acreditam ser possível
 jogar para debaixo do tapete os crimes do período. Às vezes, pode até
 parecer, para os que conhecem pouco de nossa história, que havia uma
 luta entre um regime legal e seus opositores. Uma luta de iguais. A
 mídia trabalhou de tal modo esse episódio que pode existir quem tenha
 duvidado da existência de uma ditadura sanguinária no Brasil. Você,
 eu, milhares de companheiros estamos todos loucos ao falar das
 torturas. Parece isso.



 Não houve uma ditadura que prendeu, torturou, matou. Não houve uma
 ditadura que empalou pessoas, que assassinou homens e mulheres
 covardemente, que levou tantos ao suicídio, que cortou cabeças, que
 torturou crianças, que fez desaparecer mais de uma centena de seres
 humanos. É, o barulho midiático, alicerçado em fontes da direita,
 pretende que exageramos em nossas denúncias.



 E nós, como diria Gramsci, não precisamos mais do que a verdade. Só
 precisamos dela. Por isso, Comissão da Verdade. Centenas de
 companheiros assassinados covardemente, brutalmente, de modo torpe, e
 somos obrigados a ouvir uma cantilena que naturaliza, que absolve a
 ditadura e quer porque quer perdoar os seus torturadores e assassinos.



 Nenhuma anistia pode, de modo nenhum, perdoar torturadores e
 assassinos. Aqueles que foram presos pelo Estado têm que ser
 protegidos por ele. Sequer a legislação da ditadura admitia a tortura.
 Tanto que seus ministros – poderíamos nos lembrar de Alfredo Buzaid,
 da Justiça, insistindo na inexistência da tortura – negavam de pés
 juntos que houvesse tortura no Brasil. Isso configuraria crime até
 mesmo pela legislação daquele regime de terror. Se pretender levar
 torturadores e assassinos a julgamento significa rever a lei da
 Anistia, então estamos propondo a revisão dela. Mas não é disso que se
 trata propriamente.



 Trata-se, para os objetivos da Comissão da Verdade, de apurar todas as
 violações dos direitos humanos ocorridas durante a ditadura, entre
 1964 e 1985. E apuradas, os torturadores e assassinos seriam julgados,
 com todo direito a defesa, como é do rito democrático, pelo poder
 judiciário, podendo ou não ser condenados. É isso que você tem
 defendido, corretamente. Caberia dizer que nós, os que combatemos a
 ditadura, fomos sempre julgados, quando sobrevivemos, por juízes
 militares, e os julgamentos evidentemente nunca foram imparciais.



 Dizem que assim estamos atacando as Forças Armadas. Sabidamente, não é
 esse o objetivo da Comissão da Verdade. O que não se pode, no entanto,
 é desconhecer que as Forças Armadas, por seus oficiais, mandaram
 torturar, matar, seqüestrar, desaparecer pessoas, e sempre,
 insista-se, de forma covarde. Afinal, regra geral, matavam pessoas
 indefesas, já presas, já submetidas. Isso não poderá ser apagado da
 história. Essa mancha de sangue elas carregam. Melhor que se esclareça
 tudo do período para que, então, as nossas Forças Armadas possam
 cumprir suas atribuições constitucionais sob o Estado democrático.



 Tenho insistido que não adianta alisar a ferida. É como se os mortos
 nos cobrassem. Como se os desaparecidos nos lembrassem. Não dá para
 apagar tantos crimes de nossa memória. Enquanto isso tudo não for
 esclarecido, sempre o assunto voltará, queira a nossa direita ou não.



 Por que os tantos países latino-americanos que enfrentaram ditaduras
 puderam fazer um processo tão claro, julgar e prender seus assassinos,
 seus Pinochet, e nós temos que passar por cima de tudo, como se nada
 tivesse acontecido? Essa exigência vem do fundo da consciência
 humanitária do País, vem daqueles que não aceitam a tortura, sob
 nenhum argumento, e que a consideram crime imprescritível, assim como
 o assassinato dentro das prisões e o desaparecimento de pessoas.



 Sei, ministro, que chegou a ser utilizado o argumento de que, assim
 sendo, instalada a Comissão da Verdade, também deveriam ser julgados
 os que combateram a ditadura. Devagar com o andor que o santo é de
 barro. Ou, como sempre gosto, recorro a Paulinho da Viola: tá legal,
 eu aceito o argumento, mas não me altere o samba tanto assim.



 Primeiro, caro ministro, amigo e companheiro, cabe dizer a esses
 ensandecidos, que nós, ao combater a ditadura, o fazíamos como
 legítimo direito, o direito de combater um regime espúrio, ilegal, que
 se instalou por um golpe, que derrubou pela violência um governo
 democrático. É do direito dos cidadãos de todo o mundo opor-se a
 golpes militares. Nós não vivíamos, como óbvio, sob um Estado
 democrático, mas sob uma ditadura.



 Segundo, nós já fomos julgados. Você, eu, tantas centenas de outros,
 que passamos anos nas prisões da ditadura, sabemos disso. Que diabos
 ainda querem? Enfrentamos tortura, julgamentos espúrios, e depois
 seríamos julgados de novo? Isso corresponderia, tenho dito com
 freqüência, a colocar no banco dos réus do Tribunal de Nuremberg
 aqueles que conseguiram sair vivos dos campos de concentração
 nazistas.



 O que me alegra em tudo isso é ver como a história anda.



 Quando imaginaríamos, quando presos, ter um ministro como você? Com
 essa firmeza e serenidade? Com essa integridade de princípios? Com
 essa solidariedade aos que ficaram pelo caminho, trucidados pela
 ditadura?



 Claro, poderíamos ir além, e dizer que não pensávamos também ter um
 presidente vindo das classes trabalhadoras, um operário com esse
 discernimento político, com esse compromisso com o povo brasileiro.
 Mas eu quero me deter em você, na sua coerência.



 Você ouve o lamento das famílias dos desaparecidos, dos que foram
 assassinados, dos que foram massacrados. Você, alçado à condição
 ministerial, consegue manter-se sensível, atento aos companheiros de
 caminhada, para além da posição política. Eu confesso sentir orgulho
 de o governo Lula contar com um ministro dessa estatura, com esse grau
 de compromisso com a humanidade, porque é disso que se trata.



 Sem qualquer arrogância, digo com tranqüilidade que nós não
 descansaremos. Não há hipótese de essa história ser jogada para
 debaixo do tapete, não há jeito de alisar a ferida. As monstruosidades
 da ditadura, os assassinos e torturadores não podem ser perdoados.
 Toda a verdade deve vir à tona. Enquanto não vem, ela permanece como
 um espectro sobre a Nação.



 À medida que a verdade apareça, que os julgamentos ocorram, então a
 sociedade brasileira pode seguir sua trajetória democrática sem o
 espectro da ditadura. Enquanto isso não ocorre, o assunto estará
 sempre presente. Ele é parte de nossa história. Nós queremos que o sol
 da verdade o ilumine. E volto a dizer que me orgulho de vê-lo firme e
sereno nessa luta. Conte sempre comigo.

Grande abraço.
 Emiliano José

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